quinta-feira, 18 de abril de 2013

Isso é várzea


A bola que rola no campo já está um tanto quanto gasta pela sequência interminável de partidas, além da cor avermelhada pelo contato com a terra levantando poeira a cada chute, dividida ou jogada mais ríspida. Ela é sempre punida pelo “juiz”, que, na maioria das vezes, é algum conhecido do time da casa, muitas vezes descalço e sem camisa e que não liga para as reclamações. Improvisação é uma das características principais. A “chanca”, nome da chuteira para os mais antigos, sente a falta de alguns cravos, mas ainda possui a cor reluzente dos últimos lançamentos.

A torcida, em sua maioria moradores dos arredores do campo, fica posicionada rente ao alambrado corroído pela ferrugem e com diversos buracos, e se manifesta a cada lance de perigo ou chance desperdiçada. Os nomes dos times são atrações a parte e tornam os jogos verdadeiros clássicos. 100 Querer contra o Mella Pé; Cruz Credo e Boa Esperança; e o Bate- Fácil enfrenta o Vida Loka. Invariavelmente seguidos pelos nomes dos bairros, ou como eles preferem, comunidades onde estão localizados.
“A comunidade é super importante para nos auxiliar com doações, por menor que elas sejam, pois a maioria é carente, e nos ajudar em projetos sociais e eventos para cobrir os gastos que temos”, explica Paulo Toledo, presidente do Unidos da Doze, time do Parque Doroteia, zona sul da cidade de São Paulo. A participação é quase uma regra para os times varzeanos, e as histórias têm muito em comum. Geralmente iniciados pela força de algum morador apaixonado por futebol e que foi passando o ideal de geração a geração.
É assim desde a época do Clube Atlético Ypiranga, fundado em 10 de julho de 1906, e um dos pioneiros da várzea. Mandava seus jogos na Várzea do Carmo, inclusive levando as bolas e as traves. Ou mesmo do poderoso Corinthians, que surgiu disputando torneios amadores e, após muita luta, conseguiu entrar na Liga para disputar jogos e torneios ao lado dos grandes da época como Mackenzie, Paulistano, Germânia entre outros.
O tempo passou, os times são outros e o futebol varzeano continua firme. Apesar das cidades estarem “menores”, pois hoje cada metro quadrado é disputado à tapa por todos, principalmente pelas grandes construtoras, e os campos cada vez mais escassos, as equipes se multiplicam. Especula-se que existam cerca de 2 mil times de várzea, apenas em São Paulo, sendo muitos deles registrados em cartório.
Alguns privilegiados possuem campos, vestiários e até iluminação, casos do Flor de Vila Formosa e da União Recreativa Cultural Amizade (URCA). O último possui uma espécie de campeonato organizado, trio de juízes contratados, diversas equipes uniformizadas e só é permitido participar se for convidado. “Fui convidado para jogar em 2007 por um amigo de faculdade, fui ver como era e estou até hoje”, relata Nardelli, capitão do São Cateano, um dos sete times que disputam o caneco.
Por falar em campeonato, a várzea foi, durante os anos 70, 80 e 90, atração na televisão aos domingos com o Desafio ao Galo, transmitido e patrocinado pela TV Record. A fórmula do torneio era simples, com os vencedores jogando todos os finais de semana até que fossem superados. O troféu tinha formato de um galo, daí o nome do torneio e, ao final do ano, as equipes que tivessem ficado mais tempo invictas disputavam o super galo.
A nova versão do Desafio ao Galo é a Copa Kaiser, maior competição do Estado de São Paulo com 192 equipes participantes, e que nesse ano chega a 13ª edição. E assim como na capital paulista, outras cidades possuem seus campeonatos, sempre com sucesso de público. Como a Copa dos Bairros, realizada pela Prefeitura Municipal de Manaus e que contou com 11 mil pessoas assistindo à partida final entre Parque Dez e Raiz.
Muitos dizem que a magia do futebol, aliada à habilidade do jogador brasileiro, vem desses campeonatos e muitos são os exemplos. Kléber, atacante do Palmeiras; Elias, meio de campo do Corinthians; e Diego Tardelli, centro-avante do Atlético Mineiro, deram seus primeiros chutes em times varzeanos. Além de César Sampaio, Cafu, Zé Maria e tantos outros. “Futebol não é fácil como todos acham, tem muito jogador de várzea que tem talento, mas não consegue jogar num time profissional”, declara Elias.

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