A bola que rola no campo já está um
tanto quanto gasta pela sequência interminável de partidas, além da cor
avermelhada pelo contato com a terra levantando poeira a cada chute, dividida
ou jogada mais ríspida. Ela é sempre punida pelo “juiz”, que, na maioria das
vezes, é algum conhecido do time da casa, muitas vezes descalço e sem camisa e
que não liga para as reclamações. Improvisação é uma das características
principais. A “chanca”, nome da chuteira para os mais antigos, sente a falta de
alguns cravos, mas ainda possui a cor reluzente dos últimos lançamentos.
A
torcida, em sua maioria moradores dos arredores do campo, fica posicionada
rente ao alambrado corroído pela ferrugem e com diversos buracos, e se
manifesta a cada lance de perigo ou chance desperdiçada. Os nomes dos times são
atrações a parte e tornam os jogos verdadeiros clássicos. 100 Querer contra o
Mella Pé; Cruz Credo e Boa Esperança; e o Bate- Fácil enfrenta o Vida Loka.
Invariavelmente seguidos pelos nomes dos bairros, ou como eles preferem,
comunidades onde estão localizados.
“A
comunidade é super importante para nos auxiliar com doações, por menor que elas
sejam, pois a maioria é carente, e nos ajudar em projetos sociais e eventos para
cobrir os gastos que temos”, explica Paulo Toledo, presidente do Unidos da
Doze, time do Parque Doroteia, zona sul da cidade de São Paulo. A participação
é quase uma regra para os times varzeanos, e as histórias têm muito em comum.
Geralmente iniciados pela força de algum morador apaixonado por futebol e que
foi passando o ideal de geração a geração.
É assim
desde a época do Clube Atlético Ypiranga, fundado em 10 de julho de 1906, e um
dos pioneiros da várzea. Mandava seus jogos na Várzea do Carmo, inclusive
levando as bolas e as traves. Ou mesmo do poderoso Corinthians, que surgiu
disputando torneios amadores e, após muita luta, conseguiu entrar na Liga para
disputar jogos e torneios ao lado dos grandes da época como Mackenzie,
Paulistano, Germânia entre outros.
O tempo
passou, os times são outros e o futebol varzeano continua firme. Apesar das
cidades estarem “menores”, pois hoje cada metro quadrado é disputado à tapa por
todos, principalmente pelas grandes construtoras, e os campos cada vez mais
escassos, as equipes se multiplicam. Especula-se que existam cerca de 2 mil
times de várzea, apenas em São Paulo, sendo muitos deles registrados em
cartório.
Alguns
privilegiados possuem campos, vestiários e até iluminação, casos do Flor de
Vila Formosa e da União Recreativa Cultural Amizade (URCA). O último possui uma
espécie de campeonato organizado, trio de juízes contratados, diversas equipes
uniformizadas e só é permitido participar se for convidado. “Fui convidado para
jogar em 2007 por um amigo de faculdade, fui ver como era e estou até hoje”,
relata Nardelli, capitão do São Cateano, um dos sete times que disputam o
caneco.
Por
falar em campeonato, a várzea foi, durante os anos 70, 80 e 90, atração na
televisão aos domingos com o Desafio ao Galo, transmitido e patrocinado pela TV
Record. A fórmula do torneio era simples, com os vencedores jogando todos os
finais de semana até que fossem superados. O troféu tinha formato de um galo,
daí o nome do torneio e, ao final do ano, as equipes que tivessem ficado mais
tempo invictas disputavam o super galo.
A nova
versão do Desafio ao Galo é a Copa Kaiser, maior competição do Estado de São
Paulo com 192 equipes participantes, e que nesse ano chega a 13ª edição. E
assim como na capital paulista, outras cidades possuem seus campeonatos, sempre
com sucesso de público. Como a Copa dos Bairros, realizada pela Prefeitura
Municipal de Manaus e que contou com 11 mil pessoas assistindo à partida final
entre Parque Dez e Raiz.
Muitos
dizem que a magia do futebol, aliada à habilidade do jogador brasileiro, vem
desses campeonatos e muitos são os exemplos. Kléber, atacante do Palmeiras;
Elias, meio de campo do Corinthians; e Diego Tardelli, centro-avante do
Atlético Mineiro, deram seus primeiros chutes em times varzeanos. Além de César
Sampaio, Cafu, Zé Maria e tantos outros. “Futebol não é fácil como todos acham,
tem muito jogador de várzea que tem talento, mas não consegue jogar num time
profissional”, declara Elias.